Hoje vi uns posts no facebook listando o patrimônio que cada um tinha aos sete anos. Achei bem engraçado, mas não quis escrever lá. E eu me lembro muito bem dessa idade: foi quando a minha vó amada morreu. Eu era a mais velha de quatro filhas, uma menina sonhadora, que passou duas férias doente com pneumonia, sem poder ir à praia com as outras crianças, desenvolvendo por isso uma solidão avassaladora. Sentimento que acabou fazendo parte do meu ser. Usava óculos, gostava de ler e escrever e tinha um mundo privadíssimo, onde ninguém entrava, com a exceção de minha avó. Foi um ano bom, apesar de tudo.
Esse era o inventário de meu
patrimônio pessoal:
1. uma casa em cima da mangueira do quintal,
feita com tábuas de madeira, com porta, janela e uma escada de corda pra subir
até lá. Era pequena e tosca, mas ali eu passava muito tempo, de onde via de
cima o telhado da casa e os galhos mais altos, alguns até com mangas em época
de safra. Eu subia e recolhia a escada, assim ficava sozinha, onde escrevia,
lia e sobretudo olhava pro céu e pensava.
2. um triciclo velho e com os pneus
sempre furados. Tinha ele desde meus 3 anos e, à medida que crescia, fui
deixando pra lá e minhas irmãs tomaram conta. Mas era meu.
3. três cristais hialinos (brancos)
compridos, grandes, acho que vieram de algum lustre antigo. Foi a minha avó que
me deu no dia de meu aniversário. Ela pendurou os três na janela do meu quarto,
presos com um cordão, e o sol fazia arco íris sobre a minha cama. Fui acordada
assim. E o presente eram as cores tremulas e cintilantes dos arco íris.
4. livros, livros, livros. Da
biblioteca do meu pai, mas também revistas compradas nas bancas, me lembro
demais de uma de nome ‘Pirlimpimpim”, com histórias de fantasias, dragões e
princesas e lutas de espadas.
5. uma boneca de papel colorido, daquelas
que a gente podia trocar de roupa, e mais um guarda roupa completo pra ela –
saias, blusas, vestidos, shorts, calças, sapatinhos minúsculos e até um chapéu.
Era francesa. E de tanto vestir e tirar, os pedacinhos de papel das roupas, que
a gente dobrava pra encaixar no corpo dela, foram se rasgando e o fim dessa
boneca, que nem lembro o nome, foi ser colada nas paredes da minha casa na
arvore.
6. dois carreteis de linha dourada, meu tesouro
máximo, acompanhados de agulhas e um dedal de metal imitando prata. Além de uma
tesoura bem pequena em formato de pássaro. Isso tudo dentro de uma bolsa de
chita colorida, fechada com botões. Nunca tive coragem de usar esse fio de
ouro. Também foi presente de minha avó.
7. um baton vermelho, da marca Coty.
Esse eu roubei das coisas de minha mãe mas também nunca usei.
8. um broche em forma de dois
tamancos holandeses, presos por um alfinete, que faziam um barulho de
sino quando a gente andava.
9. vários tubinhos coloridos de
tinta aquarela, além de dois pinceis e uma palheta, tudo ressecado, que foram
do meu avô. Ela era pintor e aquela era única lembrança dele. Ele me deu, mas
nunca usei.
10. um pequeno relógio oval, com
numeração em algarismos romanos e ponteiro azul escuro. A pulseira era de couro
também azul escuro. Eu achava tão lindo, tão lindo, e tinha muito orgulho de
usar. Um dia ele desapareceu das minhas coisas e eu chorei pra caramba. Uma
grande perda.
11. um pedaço grande renda de trama
complicada, e dez botões de madrepérola, redondos e quadrados. Ainda tenho a
maioria desse botões, mas não a renda, que virou um lindo remendo numa camiseta
e se perdeu no tempo.
12. uma lata grande de biscoitos,
quadrada e vazia, onde eu guardava quase todos esses tesouros. A caixa era
tampada e escondida dentro da casa na árvore, mas um dia a irmã mais nova
encontrou e fui obrigada e produzir outro esconderijo. A maior parte do tempo
ela ficava enterrada no quintal, num enorme bunker que cavei embaixo do pé de
dendê que tinha no quintal. Pra brincar com eles, eu precisava esperar que
ninguém estivesse olhando pra tirar a caixa do buraco. A tampa do buraco era
uma pedra grande, que disfarçava muito bem.
13. acho que tive um cachorro também,
mas não lembro. Em todo caso, era de todo mundo, não era meu.
Acho que foi uma infância boa, bem
apertada de grana, mas feliz. Eu ainda fazia um jornal, escrito de lápis em
folhas de caderno, com desenhos ou colagens de recortes de revista, onde dava
informações sobre as coisas interessantes que andava lendo, além de contar as
fofocas da família. Nos dias em que tios e primos se reuniam eu era chamada pra
ler os meus jornais. Odiava isso. Queria mesmo ficar sozinha...
O nome do jornal ainda lembro:
“Mural Engraçadinho”.
hahaha