Já contei do dono da casa
onde moro, aqui na roça, aquele velhinho paraibano que está com Alzheimer e de
sua mulher por 65 anos, que cuida dele como se fosse um filho. Muito queridos
os dois.
Hoje fui vê-los, levando
as últimas tangerinas do quintal numa sacolinha. Pra saber das novas, pra bater
papo, pra dar um apoio moral,
Ela me deixou entrar e
na luz clara pude ver que estava chorando. Ainda tinha lagriminhas no rosto.
Ele estava sentado quase deitado na sala, numa poltrona de reclinar, alheio a
tudo, as mãos largadas no colo.
- Ele tá cada dia mais
longe, ela disse. As vezes não reconhece nem os filhos, só tem contato comigo.
É
visível que a doença dele está num estágio bem adiantado e é isso que perturba.
Ela não aceita que tenha sido tão rápido.
-
Até dois meses, mesmo doente ele fazia as coisas em casa, consertava uma coisa
ou outra, cuidava das plantas, me ajudava na cozinha... hoje não dá mais. Ele fala
que tem vontade de fazer, mas não consegue. Tem hora que ele
sabe tudo e hora que não sabe nada, some tudo, sai fora do ar.
Deve
ser mesmo difícil lidar com isso, não sei se conseguiria. E ela vive isso meio
sozinha, não aceita sequer a cuidadora que os filhos querem trazer. O cotidiano
é difícil:
-
Ele não faz nada sozinho, até pra comer tem que ficar vigiando, segurando o
prato que vai virando, para não deixar a comida cair na barriga. E de noite, quando
ele acaba de comer primeiro do que eu, não posso comer mais, eu tenho que parar
e levar ele no banheiro, dar um banho, dar o remédio... tiro os dentinhos dele
e lavo e guardo para ele dormir...
Ela tá cansada, passa o
dia nessa peleja e também já é idosa. Três vezes na semana os filhos trazem
comida pra congelar e algum deles fica com a mãe pra ajudar em alguma coisa. Mas
mesmo essa ajuda é pouca, ele não faz nada sem ela, a toda hora fica chamando...
Não conheci outros casos
de alzheimer na vida real, só esse, e posso ver que é uma doença muito barra
pesada. Como nenhuma outra, envolve a família inteira em perdas diárias, transformando
as relações, criando situações dramáticas, como quando ele saiu sozinho e se
perdeu... e até ser encontrado, ficam todos num desespero só... Com a urgência
devastadora da doença, acho que as pessoas convivem diariamente com a morte,
com o luto. Isso é terrível...
Mas a querida velhinha,
que vai fazer 89 ano no mês que vem, segura a barra com muita dignidade e
fortaleza. Ela diz que faz isso por amor.
- Não reclamo não, não tenho raiva nem nada. A
gente fica assim meio cansado porque
tem
dia que ele não dorme, daí eu também não durmo, por isso fico cansada. Mas ele
se alegra quando começa a falar das vezes que era novo e a gente namorava... e
só comigo ele pode falar isso... eu sei que sou a vida dele, mas ele também é a
minha vida. Meu primeiro e único amor. Quando ele se for, dia seguinte eu vou também...
A
gente se despede dessa visita com o coração apertado e lágrimas nos olhos. Mas também
com a certeza que faria a mesma coisa se isso acontecesse com o amor maior da
nossa vida. Ultimamente estou falando muito de amor, porque tenho certeza
absoluta que só ele faz a vida valer a pena.
6 comentários:
eu a admiro. muito mesmo. sempre penso como deve ser doloroso a gente ver a nossa história ir se apagando na outra pessoa...
Minha avó teve Alzheimer, minha tia está com Alzheimer. Escrevi sobre isso no Biscate. ("tia Sônia e o tio Alzha", se chamava o texto).
Sua velhinha devia aceitar a cuidadora. Sei que é difícil, mas daqui pra frente é ladeira abaixo. Ninguém aguenta isso sozinha.
Minha avó foi bem diferente da minha tia, embora algumas coisas a gente identifique. A falta de reconhecimento de si mesma no espelho, por exemplo. É como se a pessoa tivesse uma imagem mental de si mesma de outra idade, com outra cara: a do espelho é uma velhinha, não é ela.
E pra quem fica (no caso de tia Sônia, tia Pilar, a companheira dela), a dor de ver a sua própria história se apagando. De não ter ninguém pra lembrar junto.
Tenho uma tia muito querida com Alzheimer. Não convivo, moro distante dela, mas lamento em meu silêncio. Logo ela, tão cheia de doçura.
Com 89 anos, sua amiga bem merece uma ajuda mais constante com os cuidados - que são muitos e tão difíceis.
Abraços, flor.
Nossa Beth...
Eu também nunca convivi com ninguém com essa doença, mas todos os relatos são de cortar o coração.
Tenho alguns dos meus produtores rurais, que eu conheci super saudaveis e vigorosos, que agora nem saem mais de casa.
E o problema aqui não é se perder na cidade, mas se perder nas matas, nos rios, lugares que eles costumavam ir para pescar.
Beijão, querida!
Eu tenho horror a esta doenca em um nivel que nem sei explicar. Soh conheco de ver em filmes, em relatos como o seu e tal. Eu nao daria conta.
Essa doença é o meu terror particular.
Vivo fazendo exercicios pros neuronios, palavras cruzadas, essas coisas, porque tenho terror...
Se deus quiser isso não vai acontecer...
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