sexta-feira, 27 de maio de 2016

As nossas meninas
























Minha neta mais velha tem 11 anos e um corpo de mulher. É muito alta pra idade e tem todos aqueles “atributos”: pernas longas, coxas grossas, bundão. Não tem peitos e nem menstruou ainda. É uma criança, brinca como criança, senta e deita como criança. Porque É uma criança. A mãe conversa muito com as filhas e elas sabem perfeitamente que o corpo é delas, que ninguém pode dizer ou obriga-las a fazer nada que elas não queiram. Sabem sobre relação de poder, sobre papo furado de homem, sobre estupro.

Mas acho tão injusto que com 11 anos minha neta precise saber e discutir essas coisas. Que comece a olhar os homens com desconfiança e um certo medo... Ela e a irmã mais nova não vão sozinhas pra escola, que é um pouco longe, mas tem liberdade de fazer sozinhas trajetos curtos, e escutam mil recomendações. Outro dia saí com ela a pé, a gente estava na Barata Ribeiro, em Copa, em um momento ela ficou mais na frente e eu um pouco atrás. Vi quando um homem de boné se aproximou, com aquele jeito de cobra antes de dar o bote. O coração ficou gelado e eu me preparei pra avançar, quando vejo que ela também notou, se virou e encarou o homem.
- Qualé a sua? Não tem o que fazer não? Vou chamar a polícia! – ela disse alto, com o dedo na cara dele.
Ela é despachada e firme e o homem mudou de rumo e foi embora. Acho que não esperava. Nem eu. Cheguei bem juntinho e passei os braços em volta dela. Ela tremia um pouco, eu tremia muito. Sentamos pra tomar um sorvete e conversar. Ela disse que de vez em quando acontece isso, mas que ela sabe se cuidar. Que ledo engano. Com essa idade a gente acha que sabe tudo. Conversamos, conversamos, até acalmar o coração.
***
Me lembro que com a idade dela sofri meu primeiro assédio. Eu ia e voltava da escola de ônibus e um fim de tarde, ônibus cheio, fiquei em pé, com os livros no braço. Senti um homem se encostando inteiro em minhas costas, e se mexendo, mexendo. Ele estava de pau duro, mas eu nem imaginava o que era aquilo, era uma menina boba, não conversava sobre isso com ninguém. O peso do homem me incomodava e por duas vezes eu o empurrei, mas ele não saiu. Na hora de descer no ponto perto de casa notei que estava com a saia toda molhada e pegajosa – o cara tinha gozado em mim. Na saia do meu uniforme escolar. Quando cheguei em casa e mostrei foi um escândalo, só aí fiquei sabendo o que tinha acontecido.
***
Tenho o coração apertado por essas nossas meninas. Tão cheias de sonhos e tão expostas. Na bolha em que vivo, que nós vivemos, o mundo é menos cruel. Mas tenho consciência que lá fora é uma guerra, as meninas são alvo e não tem apoio nem proteção. Eu digo meninas como forma de carinho, porque sou uma mulher mais velha, mas também sou menina, e elas todas são minhas irmãs. E sei que acontece com elas todo dia, de todas as formas, muitas vezes até com morte. O estupro se tornou banal e isso não pode ficar em silêncio. Meu peito dói de medo e impotência. Choro até ficar mole com tanta barbaridade. Mas não quero me calar. Acabar com o machismo é uma questão de vida ou morte para as mulheres.
***
Esse poema é de Ana Farah, de BH, de quem gosto muito.
É sobre violação e dor da alma.
*
O  choro contido na minha cara de passarinho machucado | eu era todo ouvidos e boca fechada pro abusador | saco de pancadas do psicopata | refugio do esquizofrênico |eu era o último recurso | o sopro boca-a-boca no afogado |o rivotril dos insones | eu era a vaga de estacionar | pra onde eles corriam | a gruta de acolher leprosos | o beco de esconder casqueiros. Eu costumava ser inteira pra eles virem desmoronar | eu era uma beira do cais um desterro | lugar de desmanche, descarrego, um cemitério | meu corpo de ferro velho | ruina. | Virei patrimônio local tombado | por uso e descarte | lugar de despacho | esteira de rodar bagagem. | Eu era toda em peças de encaixe | desmontadinha dentro da caixa | pronta pra ser jogo na vida. | Virei foi destroço num quarto de bagunça | as partes pisadas de uma boneca velha | despedaçada e fora de moda...




5 comentários:

Anônimo disse...

Triste que desde cedo precisemos pensar nisso. Precisemos ter medo. Você postou o poema, e eu também citei um poema da Alessandra Capriles no meu blog, em que ela externou muito bem o que estamos sentindo. Triste, porém dotado de uma força incrível.
Bjs!
http://1pedranocaminho.wordpress.com

Luciana Nepomuceno disse...

dá uma angústia saber que falta tanto pra sociedade ser minimamente igualitária.

Carmem Silvia disse...

Vim conhecer e gostei.
As meninas têm que ser alertadas, infelizmente.
Mas o mais urgente é educar os meninos.

moniquinha disse...

Coração apertado aqui tb.

Maria Angélilca disse...

Ai, Beth. Tão cheias de sonhos e tão expostas, é isso mesmo. Eu acho tão injusto também, tão duro, me corta o coração ter que explicar certas coisas, ter que contar certas coisas. Parece que algo se perde pra sempre depois disso. Mas não tem jeito, não temos opção, né? Beijo grande. Força pra elas.